quarta-feira, 5 de junho de 2013

SAIA de SAIA! Sentindo o preconceito na pele.



Relato – Saia de Saia – sentindo o preconceito na pele
      Antes de relatar minha experiência quase antropológica de tomar contato com o mais podre do ser humano que é o preconceito mascarado...CALMA! CALMA! NÃO FECHE O TEXTO AINDA! TE PEÇO APENAS 5 MINUTOS... – Neste momento, provavelmente você já deve ter visto esta foto e imoral e estranha de um japonês de saia e certamente sua cabeça já foi tomada pela automação de julgamentos: “ihhh, virou viado...”; “saia? Kkk enviadou!”; “ah lá virou hippie nesse curso de maconheiro e viado...” – mas CALMA! Esse pensamento é o normal, não é mesmo? Qual o problema nisso? Assim, antes de TUDO peço calma para ouvir algo “anormal” e que esse relato da anormalidade e de bizarrice o faça repensar um pouco o nosso modo insano de analisar e julgar a vida alheia instantaneamente – dê uma oportunidade para analisar aquilo que eu, seu amigo do facebook, seu filho, seu vizinho ou colega de sala estamos gritando: “ATENÇÃO! TEM GENTE MORRENDO POR ÓDIO ESTÚPIDO! ACORDEM! TEM GENTE MORRENDO PELO USO DE UMA SAIA” E eu garanto que a questão é um pouco mais profunda e complexa que um mero “ih, virou viado...”
      Pois bem, o motivo do relato: desde que tomei contato com a notícia do Vitor, aluno da USP que sofreu bullying por causa da saia (http://goo.gl/PU3cn)  dentro da própria universidade, quase desisti da vida. Como ainda era possível tanto ódio pela escolha de uma veste? Por que as pessoas se apegam tanto na defesa de bandeiras que nem existem verdadeiramente a elas? Se tal fato aconteceu dentro da USP, uma das bases do pensamento intelectual brasileiro dos próximos anos, alguma coisa estava errada. E por isso, meu relato: por que a experiência chocou demais, a mim e aos outros, e por isso o relato se faz justo; por que chocou de maneira negativa. Abandonar a ideia apenas na primeira parte (sair de saia por aí um único dia) é piorar o que já está ruim na medida em que posterga o preconceito e o ódio sem sentido pelo desconhecido. Não basta sair de saia, o ato simbólico de maneira isolada é perigosíssimo: se o sujeito com o qual se quer falar, já não gostava da turma da saia, ao ver o protesto isolado e sem justificativo, deve ter sentido ainda mais raiva; não foram dadas as explicações do por quê isso aconteceu, só foi forçado o encontro entre saiotes e odiosos. É natural ao outro sentir ojeriza pelo novo e é justamente por isso que se nada vier pós-protesto, a raiva se confirmará em forma de falácias – “esses bando de viado que não tem nada pra faze”: isso realmente faz muito sentido lógico pra quem nunca pensou sobre o caso e tem consigo um simplório esquema de pensamento:
*saia => mulher
*homem de saia => gay
*gay => imoral, pecador, desvia do caminho, longe de mim, etc etc etc
        Se este tipo de discurso não for desconstruído, o ato de sair de saia é negativo.  Não se deve ignorar e acreditar que vivemos em uma sociedade perfeita, e que o choque cultural causado pelo contato com um acessório tão incomum no vestuário masculino contemporâneo será positivo apenas pela sua existência em si. Isso é dar de comer aos bois; isso é irreal e ingênuo. Assim, o relato é um segundo passo, uma oportunidade de mostrar para as pessoas que o choque vem acompanhado de uma reflexão. O relato é uma forma de convencimento, é claro.

  “Saia? Eu respeito, mas longe de mim, nos outros e só”
  “E se fosse seu filho?” – perguntei, e foi esse meu primeiro diálogo após vestir a saia para aquilo que foi um dia no mínimo... estranho. 
Subindo as escada do IFCH, um dos funcionários mais simpáticos e que me cumprimenta toda manhã, baixou a cabeça, fez que não me viu. Mas naquele momento, estava tão entusiasmado com o conforto todo que esse pedaço de tecido (outrora usado por romanos, samurais japoneses, faraós egípicios e tantos outros povos) me proporcionava. Ignorei e segui.
      Ao longo da manhã, surpresa! Muitas pessoas de saia no IFCH! Isso parecia perfeito, mas não, as coisas não foram mil maravilhas. Pelo lado dos que não estavam de saia, houve diversos que aceitaram e até os que perguntaram de maneira curiosa, mas respeitosa,  o que estava havendo, quais eram os reais motivos do movimento; mas de maneira geral, olhares contidos e escondidos pelo estigma social de estarem em uma faculdade de humanas vieram a tona; vez ou outra, os cochichos se faziam ouvir propositalmente, bem como os risos e apontamentos que pareciam não corresponder em nada com a prática do Instituto. Aliás, sorrisos. Sair de saia causa uma indescritível confusão na cabeça dos outros; talvez tomados pelo choque, sorriem – um sorriso estranho, uma confusa linha tênue entre a compaixão/aceitação e o desgosto e deboche transparecidas na face do sujeito. E isso não foi isolado; por toda universidade, escutei dos de saia que sofreram dos mesmos sorrisos de choque. É de se refletir, não?
      E os que estavam de saia? Se saíram todos muito bem? Grande enganação. É claro que a incidência de manutenção do preconceito é muito menor naqueles que estavam de saia, pela óbvia abertura ao pensamento pelo ato de encararem o uso de tal vestuário. Entretanto, a ideia de que a saia está ligada e pertence exclusivamente ao universo feminino está tão enraizada no imaginário comum, que mesmo os de saia se perderam em um aspecto: a caricatura. Posavam e festavam como uma quadrilha junina invertida – tiraram fotos como se fossem homens utilizando trajes femininos. Mais uma vez a separação de gênero designado HOMEM – MULHER apareceu preso nas pessoas; e o gênero? E a ignorância e o deboche aos transgêneros?  Reforçar a caricatura é novamente manter o status quo, na medida que legitima que de fato o gênero é algo definido, estabelecido e imposto e que a partir disso, devem existir acessórios DE homem e DE mulher. Isto é uma constatação doentia, fruto de um ato sem reflexão – e simbolismo por simbolismo vira festa, desvirtua e joga no lixo a intenção de pulverizar e desconstruir por meio do convívio e da troca de informações dessa dicotomia irreal sobre os seres humanos. Um perigo!
      No almoço, o primeiro desafio:  sair do microcosmo IFCH e ir encarar e universidade de verdade, andando de peito estufado pra bancar a rejeição do outro. Entre pequenas preparações pré almoço e a fila do bandejão, contei 13 olhares daqueles diretos, que fulminam a alma. O mais enfático foi ter passado próximo a uma galera sentada na feirinha e ter de ouvir um grande cochicho: “você não tem vergonha disso não?” acompanhado de gargalhadas e deboche de um monstro. Cara, isso dói. O sentimento de diminuição perante o outro é impossível de ser ignorado; mexe e contempla a esfera de nosso ego; saber que naquele momento tudo o que eu sou é ignorado e no lugar um monstro vestido de panos nas pernas, desespera. Apavora.
      “VÁ! FAZ O QUE VOCÊ GOSTA E NÃO LIGUE PRO QUE OS OUTROS FALAM!”
Essa é uma das máximas do senso comum, que é construído tão apegado na auto-ajuda e na tirania da felicidade. Esse discurso é válido quando você é maioria e pode oprimir – quando você está do outro lado, a carga é MUITO diferente. Foi experimentando na pele que entendi finalmente a maldita ideia da coerção social – ninguém disse nada diretamente ao longo do dia, todos disfarçam, fingem tolerar, fazem de tudo para SE manterem tranquilos e enganados no papel de maioria. O ato de fingir que o preconceito não existe é uma das maiores armas para aumenta-lo; se a maioria está a favor do fingimento, está tudo ok – desse modo, é óbvio que toda carga só é sentida apenas pelo oprimido – a negatividade e o ódio são silenciosos – venenosos e com destino certo; por isso tenha a certeza: você NUNCA entenderá o desespero de uma mulher; a luta do homossexual pelos seus direitos, a dor diária de um negro. Você não entende o outro sem adentrar seu universo – por isso a verdade entre vocês é tão distante. É pelo simples fato de que verdades nunca serão absolutas e que é impossível desse modo julgar o outro sem os olhos da diversidade e do respeito mútuo. A condição para poder assumir minhas verdades deve ser necessariamente a aceitação de que elas podem ser desconstruídas pelas verdades do outro – tudo aquilo que temos para nós como verdades na verdade não pertence de maneira verdadeira a nós – é externo e socialmente adquirido. Assim, é fundamental entender que se aquilo que nos apegamos e defendemos na verdade não é nosso, é possível adquirir novas visões de mundo que caminhem cada vez mais para o uso de algo mais respeitoso ao limite do outro, algo que seja baseado próximo da racionalidade do respeito. E voltando: com a saia não é diferente.
          Os homens usam saia desde muito tempo: há relatos indícios de que sumérios já usavam  uma espécie de tecido que cobria as partes baixas; para os Romanos, era um absurdo o uso das calças, um insulto a virilidade de suas pernas;  saia nunca delimitou o universo feminino ou masculino; sempre foi além disso.
Durante a tarde, novas ocorrências se acumularam e o nível de argumentação foi fazendo cada vez menos sentido; desde “UH BARANGA” ao passar pelo Ciclo Básico próximo ao IFGW e “DECIDIU ABRIR AS PERNAS?”ouvido ali na imediações da Biologia até “viado tudo bem, mas de saia?” que li em uma postagem alheia pelo Facebook. Novamente, não estou exigindo uma sociedade perfeita de maneira imediata: eu sabia que as pessoas iam olhar, a novidade salta aos olhos, a reclamação não é essa. Mas é da forma de abordagem; transformar o sujeito num monstro aponta-lo como herege, fingir que o sujeito não existe... é disso que estou falando. E é disso que você não entende.
       E aí, a auto covardia: em apenas um dia de saia, o dilema do ponto de ônibus – ter de encarar a rua e a cidade depois da repressão e dos olhares somados ao desejo negativo reprimido em sociedade mas desejado individualmente contra nós de saia, me fizeram desistir. Eu admito, não tive coragem e fui acovardado de encarar a “vida real” – a pressão é grande e o risco ainda maior. Não era pra ser assim. Não PODE ser assim! Naquele momento, me deixaram com vergonha de mim mesmo. Pela única condição de defender uma causa da minoria, os olhares te pulverizam em coerção tamanha que a inversão é certeira: o errado ali era eu. Errado por usar saia; errado por que posso ter feito tudo de certo na vida, mas naquele momento, eu era um homem de saia. Errado por atentar contra os olhos de uma maioria que se julga no direito de determinar certo e errado. Errado por existir diferente dos outros. Por um segundo, me senti realmente errado, pecador e imoral; – preconceito mascarado é mais forte que magia negra, meus amigos. E isso foi só um dia pra mim. Vê a importância do debate? Vê como a questão é muito mais do que uma simples festa e um ato simbólico pode ser muito mais que representativo em força do que algazarra aos olhos do outro?
       Eu, que sempre fui invisível na universidade, virei o centro de depósito de ódio alheio. As pessoas parecem pouco se importar com o desejo negativo aquilo que não as agrada; quando o sujeito assume a posição superior de dominação de cultura, o respeito e o entendimento da diversidade são simplesmente esquecidos. E isso acontece todo dia: pense que a sua atitude de preconceito é isolada apenas pra ti; para aquele que o recebe, as fontes são diversas e diárias e o sentimento de inferioridade é alimentado a todo o momento no imaginário do sujeito. “Ah, mas isso é coisa da nossa cult....” CALA A BOCA! PARE DE DEFENDER QUE A NOSSA ISSO OU A NOSSA AQUILO! – aceitar a cultura como puramente estática, universal e imutável é legitimar culturas passadas absurdas – pense, por exemplo, que a escravidão negra já foi cultural bem como a cultura da Inquisição e da fogueira. Não é difícil desconstruir a ideia de que a existência da cultura parte da premissa básica de sua mutabilidade e alteração constante com o passar do tempo. Aliás, vou simplificar com um exercício mental bastante útil: volte 200 anos na história e analise as grandes práticas culturais do período de 1813 (escravidão, sociedade patriarcal e submissão da mulher, etc...) – agora veja como é fácil destruir esse tipo de pensamento comum e único em verdade para aquela época e note como ele parece mesquinho, ingênuo e até bem idiota para o nosso padrão de sociedade atual.  Vê como a cultura se altera? Vê como aquilo que você defende é relativo e não pertence a ti? Faça uma autoanálise: será que aquilo que você defende e prega com ódio tanto fervor, não terão as mesmas significâncias idiotas que a escravidão daqui a 200 anos?
  Por isso que deixo o desafio: SAIA de SAIA! Encare o lado do odiado e não do odioso; experimente a sensação de ter um encontro prazeroso com o mais baixo do ser humano – quem sabe assim um dia vocês entendem que nós continuamos os mesmos seres seja de saia, sem saia, de shorts ou­ desnudo. Da minha parte, a luta por essa compreensão, continua.


3 comentários:

  1. Não vou comentar no Facebook, porque é um paraíso de flamewar.

    Eu entendi a questão do preconceito mas não é normal achar incomum algo incomum? Uma pessoa pode olhar torto para você de saia, claro, com pensamentos malignos homofóbicos ou coisa do tipo, mas pode olhar torto para você de saia assim como olharia torto para alguém usando um balde na cabeça: é incomum. Nós facilmente notamos o diferente, é uma das nossas capacidades como ser humano. Tolerar o diferente, claro, já são outros quinhentos... Olhava-se torto para mulheres vestidas de terno, décadas atrás, mas hoje é normal. Se homens começam a usar saia, daqui algum tempo também será normal, é uma questão de costume. Extremistas sempre vão existir, sim! Até hoje existem aqueles que acham que mulheres devem ficar em casa varrendo o chão e limpando banheiro, e o homem deve ir trabalhar e sustentar a família, mas isso já é visto como algo ultrapassado :)

    Só para ressaltar, não nego nenhum tipo de preconceito existente em nosso meio, só acho que simplesmente botar uma saia não vá revelar exatamente a mentalidade das pessoas. O espanto causado nas pessoas é por causa de ser incomum um homem usar saia, e não porque usar saia é homossexualismo... não dá pra analisar o psicológico de um indivíduo apenas olhando seu sorriso ou sua reação a uma situação aleatória como essa.

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    1. Biscoitinho, eu contemplo essa visão no meu texto na medida que disse que não esperava que não fosse ser notado, eu sabia do choque. O problema foi o tipo de choque e o tipo de comentário ouvido. A parte dos sorrisos também contempla o que você disse sobre o novo, sobre o incomum... mas ignorar que a parte dos comentários OUVIDOS por mim como o da "vergonha" e o do "abriu as pernas" não remete a carga negativa atribuída a homossexualidade é algo igualmente perigoso. sem contar toda carga de preconceito mascara que temos intrínseca a nós(que inclusive nos fazem crer que o a existência do incomum ser necessariamente comum é algo para ser ignorado).

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    2. De modo algum deve-se ignorar esses comentários, com certeza! Só não acho que o mesmo tipo de mentalidade atribuído aos donos desses comentários deve ser dado aos que deixaram escapar um riso ou cochicharam. Afinal, de certo modo, eles estão resistindo ao impulso de ir bater em você (o que geralmente os animais fazem quando encontram um diferente entre eles).

      Esqueci de falar, me desculpe: parabenizo você por realizar um experimento ousado como esse. Não sei se eu teria coragem de fazer isso, já tive medo de usar calça slim (hoje uso normalmente) e ser taxado como homossexual, ainda mais que tenho cabelo comprido! Medo não porque ser homossexual é ruim, mas porque eu seria visto como uma pessoa ruim.

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