Relato – Saia de Saia
– sentindo o preconceito na pele
Antes de relatar minha experiência quase antropológica de
tomar contato com o mais podre do ser humano que é o preconceito mascarado...CALMA! CALMA! NÃO FECHE O TEXTO AINDA!
TE PEÇO APENAS 5 MINUTOS... – Neste momento, provavelmente você já deve ter
visto esta foto e imoral e estranha de um japonês de saia e certamente sua
cabeça já foi tomada pela automação de julgamentos: “ihhh, virou viado...”;
“saia? Kkk enviadou!”; “ah lá virou hippie nesse curso de maconheiro e
viado...” – mas CALMA! Esse pensamento é o normal, não é mesmo? Qual o problema
nisso? Assim, antes de TUDO peço calma para ouvir algo “anormal” e que esse
relato da anormalidade e de bizarrice o faça repensar um pouco o nosso modo
insano de analisar e julgar a vida alheia instantaneamente – dê uma
oportunidade para analisar aquilo que eu, seu amigo do facebook, seu filho, seu
vizinho ou colega de sala estamos gritando: “ATENÇÃO! TEM GENTE MORRENDO POR
ÓDIO ESTÚPIDO! ACORDEM! TEM GENTE MORRENDO PELO USO DE UMA SAIA” E eu garanto
que a questão é um pouco mais profunda e complexa que um mero “ih, virou
viado...”
Pois bem, o motivo do relato: desde que tomei contato com a
notícia do Vitor, aluno da USP que sofreu bullying por causa da saia (http://goo.gl/PU3cn) dentro da própria universidade, quase desisti
da vida. Como ainda era possível tanto ódio pela escolha de uma veste? Por que
as pessoas se apegam tanto na defesa de bandeiras que nem existem verdadeiramente
a elas? Se tal fato aconteceu dentro da USP, uma das bases do pensamento
intelectual brasileiro dos próximos anos, alguma coisa estava errada. E por
isso, meu relato: por que a experiência chocou demais, a mim e aos outros, e
por isso o relato se faz justo; por que chocou de maneira negativa. Abandonar a
ideia apenas na primeira parte (sair de saia por aí um único dia) é piorar o
que já está ruim na medida em que posterga o preconceito e o ódio sem sentido
pelo desconhecido. Não basta sair de saia, o ato simbólico de maneira isolada é
perigosíssimo: se o sujeito com o qual se quer falar, já não gostava da turma
da saia, ao ver o protesto isolado e sem justificativo, deve ter sentido ainda
mais raiva; não foram dadas as explicações do por quê isso aconteceu, só foi
forçado o encontro entre saiotes e odiosos. É natural ao outro sentir ojeriza
pelo novo e é justamente por isso que se nada vier pós-protesto, a raiva se
confirmará em forma de falácias – “esses bando de viado que não tem nada pra
faze”: isso realmente faz muito sentido lógico pra quem nunca pensou sobre o
caso e tem consigo um simplório esquema de pensamento:
*saia => mulher
*homem de saia => gay
*gay => imoral, pecador, desvia do caminho, longe de
mim, etc etc etc
Se este tipo de discurso não for desconstruído, o ato de
sair de saia é negativo. Não se deve
ignorar e acreditar que vivemos em uma sociedade perfeita, e que o choque
cultural causado pelo contato com um acessório tão incomum no vestuário
masculino contemporâneo será positivo apenas pela sua existência em si. Isso é
dar de comer aos bois; isso é irreal e ingênuo. Assim, o relato é um segundo
passo, uma oportunidade de mostrar para as pessoas que o choque vem acompanhado
de uma reflexão. O relato é uma forma de convencimento, é claro.
“Saia? Eu respeito, mas longe de mim, nos outros e só”
“E se fosse seu filho?” – perguntei, e foi esse meu primeiro
diálogo após vestir a saia para aquilo que foi um dia no mínimo... estranho.
Subindo as escada do IFCH, um dos funcionários mais simpáticos e que me
cumprimenta toda manhã, baixou a cabeça, fez que não me viu. Mas naquele
momento, estava tão entusiasmado com o conforto todo que esse pedaço de tecido
(outrora usado por romanos, samurais japoneses, faraós egípicios e tantos
outros povos) me proporcionava. Ignorei e segui.
Ao longo da manhã, surpresa!
Muitas pessoas de saia no IFCH! Isso parecia perfeito, mas não, as coisas não foram
mil maravilhas. Pelo lado dos que não estavam de saia, houve diversos que
aceitaram e até os que perguntaram de maneira curiosa, mas respeitosa, o que estava havendo, quais eram os reais
motivos do movimento; mas de maneira geral, olhares contidos e escondidos pelo
estigma social de estarem em uma faculdade de humanas vieram a tona; vez ou
outra, os cochichos se faziam ouvir propositalmente, bem como os risos e apontamentos
que pareciam não corresponder em nada com a prática do Instituto. Aliás, sorrisos.
Sair de saia causa uma indescritível confusão na cabeça dos outros; talvez
tomados pelo choque, sorriem – um sorriso estranho, uma confusa linha tênue
entre a compaixão/aceitação e o desgosto e deboche transparecidas na face do
sujeito. E isso não foi isolado; por toda universidade, escutei dos de saia que
sofreram dos mesmos sorrisos de choque. É de se refletir, não?
E os que estavam de saia? Se saíram todos muito bem? Grande
enganação. É claro que a incidência de manutenção do preconceito é muito menor
naqueles que estavam de saia, pela óbvia abertura ao pensamento pelo ato de
encararem o uso de tal vestuário. Entretanto, a ideia de que a saia está ligada
e pertence exclusivamente ao universo feminino está tão enraizada no imaginário
comum, que mesmo os de saia se perderam em um aspecto: a caricatura. Posavam e
festavam como uma quadrilha junina invertida – tiraram fotos como se fossem
homens utilizando trajes femininos. Mais uma vez a separação de gênero
designado HOMEM – MULHER apareceu preso nas pessoas; e o gênero? E a ignorância
e o deboche aos transgêneros? Reforçar a
caricatura é novamente manter o status quo, na medida que legitima que de fato
o gênero é algo definido, estabelecido e imposto e que a partir disso, devem
existir acessórios DE homem e DE mulher. Isto é uma constatação doentia, fruto
de um ato sem reflexão – e simbolismo por simbolismo vira festa, desvirtua e
joga no lixo a intenção de pulverizar e desconstruir por meio do convívio e da
troca de informações dessa dicotomia irreal sobre os seres humanos. Um perigo!
No almoço, o primeiro desafio: sair do microcosmo IFCH e ir encarar e
universidade de verdade, andando de peito estufado pra bancar a rejeição do
outro. Entre pequenas preparações pré almoço e a fila do bandejão, contei 13
olhares daqueles diretos, que fulminam a alma. O mais enfático foi ter passado
próximo a uma galera sentada na feirinha e ter de ouvir um grande cochicho:
“você não tem vergonha disso não?” acompanhado de gargalhadas e deboche de um
monstro. Cara, isso dói. O sentimento de diminuição perante o outro é
impossível de ser ignorado; mexe e contempla a esfera de nosso ego; saber que
naquele momento tudo o que eu sou é ignorado e no lugar um monstro vestido de
panos nas pernas, desespera. Apavora.
“VÁ! FAZ O QUE VOCÊ
GOSTA E NÃO LIGUE PRO QUE OS OUTROS FALAM!”
Essa é uma das máximas do senso
comum, que é construído tão apegado na auto-ajuda e na tirania da felicidade.
Esse discurso é válido quando você é maioria e pode oprimir – quando você está
do outro lado, a carga é MUITO diferente. Foi experimentando na pele que entendi
finalmente a maldita ideia da coerção
social – ninguém disse nada diretamente ao longo do dia, todos disfarçam,
fingem tolerar, fazem de tudo para SE manterem tranquilos e enganados no papel
de maioria. O ato de fingir que o preconceito não existe é uma das maiores
armas para aumenta-lo; se a maioria está a favor do fingimento, está tudo ok –
desse modo, é óbvio que toda carga só é sentida apenas pelo oprimido – a
negatividade e o ódio são silenciosos – venenosos e com destino certo; por isso
tenha a certeza: você NUNCA entenderá o desespero de uma mulher; a luta do
homossexual pelos seus direitos, a dor diária de um negro. Você não entende o
outro sem adentrar seu universo – por isso a verdade entre vocês é tão
distante. É pelo simples fato de que verdades nunca serão absolutas e que é impossível desse modo
julgar o outro sem os olhos da diversidade e do respeito mútuo. A condição para
poder assumir minhas verdades deve ser necessariamente a aceitação de que elas
podem ser desconstruídas pelas verdades do outro – tudo aquilo que temos para
nós como verdades na verdade não pertence de maneira verdadeira a nós – é
externo e socialmente adquirido. Assim, é fundamental entender que se aquilo
que nos apegamos e defendemos na verdade não é nosso, é possível adquirir novas
visões de mundo que caminhem cada vez mais para o uso de algo mais respeitoso
ao limite do outro, algo que seja baseado próximo da racionalidade do respeito.
E voltando: com a saia não é diferente.
Os homens usam saia desde muito tempo: há relatos indícios
de que sumérios já usavam uma espécie de
tecido que cobria as partes baixas; para os Romanos, era um absurdo o uso das
calças, um insulto a virilidade de suas pernas;
saia nunca delimitou o universo feminino ou masculino; sempre foi além
disso.
Durante a tarde, novas ocorrências se acumularam e o nível
de argumentação foi fazendo cada vez menos sentido; desde “UH BARANGA” ao
passar pelo Ciclo Básico próximo ao IFGW e “DECIDIU ABRIR AS PERNAS?”ouvido ali
na imediações da Biologia até “viado tudo bem, mas de saia?” que li em uma
postagem alheia pelo Facebook. Novamente, não estou exigindo uma sociedade
perfeita de maneira imediata: eu sabia que as pessoas iam olhar, a novidade
salta aos olhos, a reclamação não é essa. Mas é da forma de abordagem;
transformar o sujeito num monstro aponta-lo como herege, fingir que o sujeito
não existe... é disso que estou falando. E é disso que você não entende.
E aí, a auto covardia: em apenas um dia de saia, o dilema do
ponto de ônibus – ter de encarar a rua e a cidade depois da repressão e dos
olhares somados ao desejo negativo reprimido em sociedade mas desejado
individualmente contra nós de saia, me fizeram desistir. Eu admito, não tive
coragem e fui acovardado de encarar a “vida real” – a pressão é grande e o
risco ainda maior. Não era pra ser assim. Não PODE ser assim! Naquele momento,
me deixaram com vergonha de mim mesmo. Pela única condição de defender uma
causa da minoria, os olhares te pulverizam em coerção tamanha que a inversão é
certeira: o errado ali era eu. Errado por usar saia; errado por que posso ter
feito tudo de certo na vida, mas naquele momento, eu era um homem de saia. Errado
por atentar contra os olhos de uma maioria que se julga no direito de
determinar certo e errado. Errado por existir diferente dos outros. Por um
segundo, me senti realmente errado, pecador e imoral; – preconceito mascarado é
mais forte que magia negra, meus amigos. E isso foi só um dia pra mim. Vê a
importância do debate? Vê como a questão é muito mais do que uma simples festa
e um ato simbólico pode ser muito mais que representativo em força do que
algazarra aos olhos do outro?
Eu, que sempre fui invisível na universidade, virei o
centro de depósito de ódio alheio. As pessoas parecem pouco se importar com o
desejo negativo aquilo que não as agrada; quando o sujeito assume a posição
superior de dominação de cultura, o respeito e o entendimento da diversidade
são simplesmente esquecidos. E isso acontece todo dia: pense que a sua atitude
de preconceito é isolada apenas pra ti; para aquele que o recebe, as fontes são
diversas e diárias e o sentimento de inferioridade é alimentado a todo o
momento no imaginário do sujeito. “Ah, mas isso é coisa da nossa cult....” CALA
A BOCA! PARE DE DEFENDER QUE A NOSSA ISSO OU A NOSSA AQUILO! – aceitar a
cultura como puramente estática, universal e imutável é legitimar culturas
passadas absurdas – pense, por exemplo, que a escravidão negra já foi cultural
bem como a cultura da Inquisição e da fogueira. Não é difícil desconstruir a
ideia de que a existência da cultura parte da premissa básica de sua
mutabilidade e alteração constante com o passar do tempo. Aliás, vou
simplificar com um exercício mental bastante útil: volte 200 anos na história e
analise as grandes práticas culturais do período de 1813 (escravidão, sociedade
patriarcal e submissão da mulher, etc...) – agora veja como é fácil destruir
esse tipo de pensamento comum e único em verdade para aquela época e note como
ele parece mesquinho, ingênuo e até bem idiota para o nosso padrão de sociedade
atual. Vê como a cultura se altera? Vê
como aquilo que você defende é relativo e não pertence a ti? Faça uma autoanálise:
será que aquilo que você defende e prega com ódio tanto fervor, não terão as
mesmas significâncias idiotas que a escravidão daqui a 200 anos?
Por isso que deixo o desafio: SAIA de SAIA! Encare o lado do odiado e não do odioso; experimente
a sensação de ter um encontro prazeroso com o mais baixo do ser humano – quem
sabe assim um dia vocês entendem que nós continuamos os mesmos seres seja de saia,
sem saia, de shorts ou desnudo. Da minha parte, a luta por essa compreensão,
continua.